em "code and other laws of cyberspace", larry lessig diz que nosso comportamento é regulado por modalidades de restrição. a lei é só uma delas. as outras são as normas sociais, o mercado e a arquitetura física da sociedade, onde está, por exemplo, software.
james grimmelmann discorda. ele propõe [e eu concordo] que software é uma modalidade diferente de restrição, porque 1] é automatizado: uma vez escrito e rodando, o custo de continuar fazendo o que faz é marginal, a menos que tenha que ser modificado [vide 3]; 2] é imediato: o tipo de restrição imposta por um sistema é tal que, se uma certa operação [financeira, por exemplo] não é permitida, você não pode realizá-la, mesmo que queira, caso toda aquela classe de operações estiver informatizada; e 3] é plástico, permitindo que quase qualquer restrição, por mais complexa que seja, possa ser implementada, desde que possa ser descrita a contento.
grimmelmann fala sobre o estado atual de software e retrata uma situação corrente na sociedade, que é a de software sendo usado na sua forma mais comum de habilitação, regulação e restrição às ações sócio-econômicas. toda vez que "software" aparece no texto, pense em "sistema", no mesmo sentido em que o atendente que está tentando resolver um problema para você lhe diz que "não dá", porque o "sistema não deixa".
ainda segundo grimmelmann, software tem quatro propriedades como modalidade de regulação e restrição. a primeira é que software é baseado em regras e não em padrões [de comportamento]. de uma certa forma, seja lá qual for sua demanda, a decisão já está tomada e o "sistema" não vai pensar sobre seu caso. um certo conjunto de regras no sistema que processa o IRPF leva sua declaração para a malha fina sem qualquer julgamento de valor [!] ou noção de contexto.
depois, software não precisa ser transparente [para ser aceito e usado]. pouquíssima gente sabe como funciona o software por trás dos principais sistemas de informação que usa o tempo inteiro. quase ninguém faz idéia do que está por trás de google, twitter, youTube, faceBook, windows, word ou android. e bilhões de pessoas são, o tempo todo, habilitadas e têm seu comportamento regulado e restrito por estes "sistemas". por outro lado, mesmo se houvesse uma boa quantidade de pessoas disposta a entender como bing ou google funcionam, é quase certo que as empresas por trás de tais sistemas se recusariam a mostrar seus algoritmos e respectivas implementações.
ainda mais, as regras determinadas no [ou pelo] software não podem ser ignoradas. no caso de sistemas de informação isso é cada vez mais verdadeiro, como efeito colateral da transformação das organizações em métodos e processos definidos, habilitados e restritos por software. se não está codificado, é porque não existe ou não será feito. nas teles, por exemplo, o principal problema do lançamento de um novo serviço não é o software e hardware que habilitam o serviço propriamente dito, mas a modificação do sistema de "billing" onde se contabiliza seu uso e de onde sai o boleto de pagamento. se não entra no billing, o serviço não existe.
finalmente, software está sujeito a falhas [súbitas]. primeiro, porque sofre de defeitos de implementação de especificações conhecidas. depois, porque há coisas que deveria dar conta e não dá, porque não havia especificações para tal. como se não bastasse, software está sujeito a hacking e não é robusto: atacado, não recupera seu estado anterior por si próprio na vasta maioria dos casos e, sob demanda, pode colapsar devido a problemas de sobrecarga e performance.
o paper de grimmelmann é uma leitura interessante e termina com a discussão de um dos ambientes mais intensamente regulados e restritos por software, os mercados eletrônicos similares à NASDAQ. poderia ter sido o sistema eleitoral, uma das bases da democracia representativa: no brasil, ele é inteiramente regulado por software, opaco como poucos e fonte permanente de intensos debates sobre sua segurança [veja aqui, por exemplo].
a pergunta que fica é… se tudo é software [tente escapar disso na vida cotidiana…] e software está passando a regular tudo… quem regula software?
ou, ainda mais radicalmente, será que é possível regular software, restringir o que software [lembre-se: no nosso caso, "sistema"] faz ou deixa de fazer? em que contextos, por que, como? e pra que e por quem?