Somos todos parte da infosfera; o controle de vôo também

[Texto da série “Silvio Meira no G1”, publicado originalmente no G1, em 07/11/2006.]

Já se disse nesta coluna que tudo na vida é computação e, hoje, vamos dizer que vivemos dentro de um universo de informação, a infosfera. Luciano Floridi, filósofo da Oxford University, cunhou o termo para representar o universo de todos os documentos, operações sobre os mesmos e agentes que realizam tais operações. Quando o leitor vai a um caixa eletrônico, ele é o agente que realiza um conjunto de operações sobre um documento, uma conta bancária (a sua, se tudo estiver dentro dos conformes).

Quando se liga para um número 0800 pedindo ajuda para um serviço, o mesmo acontece: somos agentes, associados a determinados documentos, que devem, ou deveriam, corresponder aos serviços pelos quais pagamos e neles estamos realizando operações, possivelmente correspondidos pelos atendentes (outros agentes…) do outro lado da linha, que mudam o status dos nossos documentos, de forma a atender nossos novos ou mudados desejos, como inserir ou retirar canais de TV paga do nosso serviço (e conta) ou mudar o contrato (um documento) de nosso serviço de celular.

Se estamos mesmo vivendo nessa tal de infosfera, a rede de todas as coisas, inclusive nós próprios, os exemplos são tantos e tão perto de cada um que poderíamos passar o resto da vida a desfiá-los, um a um. Seria demais para a paciência do leitor. Fiquemos com um quase lugar comum dos últimos dias, o caos aéreo nacional, que aconteceu porque um número de agentes, os controladores de vôo, resolveu diminuir o número de documentos sobre os quais fazem operações simultaneamente, forçando uma parte das aeronaves a ficar no solo, esperando a disponibilidade de agentes para tratá-las…

É importante notar que o controle de tráfego aéreo não controla o tráfego aéreo… mas a informação sobre o mesmo. Os aviões são quase autônomos, eles próprios pequenas esferas de informação — se comparadas com a infosfera maior — sobre os quais outros agentes, seus pilotos, realizam operações que, quando dão errado, levam a conseqüências nefastas como a do vôo Gol 1907. Na sexta-feira do desastre, os agentes envolvidos não compartilhavam os mesmos documentos (seu conhecimento da informação era assimétrico) o que os levou a não tomar as decisões e realizar as operações que teriam evitado o maior acidente da aviação brasileira.

A infosfera, como identificada por Floridi, é cada vez mais parte da infra-estrutura da humanidade e nós acabamos de descobrir, aqui no Brasil, que a parte dela que está relacionada ao tráfego aéreo tem sérias deficiências, que não começaram há quinze dias, o que certamente não é privilégio do setor, no país. Mas que pode levar a pelo menos uma pergunta interessante: será que não poderíamos desenvolver agentes artificiais para controlar o tráfego aéreo? Ou seja, será que o trabalho dos controladores não poderia ser feito por software?…

Esta pergunta está sendo feita em outros contextos, desde a cabine dos aviões até o assento dos motoristas nos automóveis, passando por tudo o que se move e muita coisa que está aparentemente parada, como a distribuição de energia elétrica e o controle de sinais de trânsito, além do diagnóstico e tratamento de doenças de todos os tipos. E há muita coisa que software certamente pode fazer, hoje. Mas há alguns limites que não devem ser esquecidos, sob pena de aumentarmos em demasiado o risco de alguma coisa atingir o ventilador, como dizia a minha vó.

Primeiro, os problemas decisão tratados pelos controladores são muito complexos e em tempo real, o que significa que você tem o tempo dos acontecimentos para resolver o problema. Não adianta ter a melhor solução três minutos depois de uma colisão; é melhor ter uma razoável muitos minutos antes. E o mesmo, claro, valeria para o software. Segundo, tirar o controlador do circuito significa colocá-lo de volta, para resolver problemas mais graves, pois um sistema automatizado de controle de tráfego aéreo certamente teria limitações. O que nos levaria a ter um controlador sempre preparado e em prontidão, mas sem tomar decisões, a não ser em situações muito graves, o que é um contra-senso, pois talvez ele não tivesse tempo (o tal tempo real…) para entender a situação quando fosse chamado a resolvê-la.

Nos EUA, onde há quinze mil controladores, que chegam a ganhar mais de US$100 mil por ano (contra menos de US$20 mil no Brasil?), muitos bilhões de dólares já foram gastos em tentativas de informatizar o controle de tráfego aéreo, com sucessos, digamos muito parciais. O radar auxiliado por computador é um dos resultados do investimento, mas não vai haver, nos próximos dez anos, um sistema capaz tirar dos controladores o papel de principal agente informacional do sistema de tráfego aéreo, e sim vários tipos de software e hardware que poderão auxiliar muito seu trabalho, num ambiente onde haverá cada vez mais demanda por viagens aéreas.

Isso significa, lá na América, que eles terão que contratar mais dez mil controladores de vôo até 2015 e o plano para tal é público e está neste link, em .PDF (envie para alguém que você conhece no governo e peça uma cópia do equivalente brasileiro).

Se o leitor tiver curiosidade sobre o que faz mesmo um controlador, há um jogo na internet (veja aqui) que dá uma idéia bem básica de como a coisa funciona. Para quem quiser algo muito mais sofisticado, faça um download deste outro e controle o aeroporto de Arlanda, em Estocolmo, usando telas e comandos que parecem muito com as realmente usadas no controle de vôo. Se você gostar do assunto, pode até virar controlador aqui no Brasil e ajudar a resolver nossos problemas… ou conseguir um visto de trabalho nos EUA e ganhar dinheiro de verdade com seu recém-adquirido conhecimento.

Lá nos EUA, aliás, esta história de infosfera está sendo levada a sério mesmo: a US Air Force redefiniu sua missão para incluir como área operacional, além do ar e do espaço, o ciberespaço, que já tem um comando específico e é considerado essencial, pois a guerra, segundo o general da área, “é dados”… Resta saber como foi que esquecemos, aqui, que o tráfego aéreo “era dados”, também, e tratados por seres humanos.

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