[Texto da série “Silvio Meira no G1”, publicado originalmente no G1, em 23/06/2007.]
Construimos uma humanidade baseada no esquecimento. Como é que vamos mantê-la, quando o esquecimento, na rede, virou lembrança eterna?…
A humanidade foi construída sobre o princípio básico de que lembrar é mais difícil do que esquecer. O normal, de fato, é esquecer. Tanto que nos lembramos, e muito bem, das pessoas que parecem ter uma memória de “elefante”. É bem verdade, como os homens bem lembram, que as mulheres se lembram de muito mais, especialmente quando se trata de aniversários de namoro, do primeiro jantar com a sogra e do casamento. Mas isso é outra conversa.
Acontece que as tecnologias para captura, publicação, armazenamento, replicação, busca e disseminação de informação, combinadas na rede, nos últimos anos, começam a criar uma nova capacidade: a incapacidade de esquecer. Nunca, em nenhuma época, ninguém teve tanta informação sobre as pessoas e seus hábitos como certas empresas estão começando a ter, na rede. A ponto de começarmos a achar que sites de comércio eletrônico estão “viciados” em nós.
E estão mesmo: a combinação de memórias, depositadas em nossos computadores e nos servidores deles, associadas a sistemas de recomendação que analisam nosso comportamento, “criam”, em tempo real, a informação que queremos ver. Mesmo? Ou seria a visão que o site, de alguma forma, gostaria que víssemos, para magnificar nossa chance de gastar mais tempo, dinheiro ou os dois, lá? Não preciso dizer qual é minha aposta.
Viktor Mayer-Schönberger anda preocupado com essa nossa nova incapacidade de esquecer, baseada na web. Na era de Google (veja este editorial do FT.com) e outras ferramentas de busca e armazenamento, tudo o que há de registro nosso, aqui na Terra, está sendo gravado para sempre. Incluindo todas as suas (e as minhas) transações comerciais, em qualquer lugar onde compramos qualquer coisa, na web, nos últimos muitos anos.
E não só: tudo o que está escrito no meu blog, no seu e nos fotologs e redes sociais de todas as pessoas que publicam, neles, toda sua vida, tem o mesmo destino… a memória, infinita e perfeita, da rede. E isso pode levar a todo tipo de problema novo, na sociedade, já que o esquecimento paulatino dos acontecimentos tem sido a base sobre a qual nossa história é montada.
Segundo Mayer-Schönberger, temos que começar a implementar uma ecologia de informação, onde o sistema legal deveria obrigar quem coleta dados (não só na rede) a criar software que esquece com o passar do tempo e, principalmente, onde tal capacidade é padrão. Ou seja, a menos que determinemos o contrário, uma vez expirado o prazo de validade, por nós definido, dos dados que confiamos à loja onde compramos a biografia de Roberto Carlos, eles são evaporados. Aí a loja, sem necessariamente lhe esquecer, passa a não mais saber que você comprou o livro, hoje proibido, e por sinal muito bom.
Alguma proposta como a de Mayer-Schönberger terá que ser objeto de discussão nos legislativos mundiais em breve. Antes que seja muito tarde para protegermos nosso presente (e futuro) do nosso passado. Tenho ouvido histórias terror sobre pessoas, muito jovens, atingidas por brincadeiras de sua história recente que, antigamente, aconteciam num bar, na faculdade, num acampamento. Coisas impensadas e inconseqüentes pelas quais qualquer adolescente passa. Mas que hoje, na rede, ficam gravadas para sempre.
Parece razoável que, mesmo querendo entregar muitos de nossos dados a um site qualquer, para uma determinada transação, queiramos garantir que os mesmos sejam destruídos quando nós, e não o site, achemos que não seja mais necessário.
Resta saber quando tal agenda vai aparecer em fins-de-mundo como o nosso, com o legislativo envolvido com bois voadores e outros tipos de assombração comuns na capital federal. Tomara que seja logo, pois sua falta, aqui, pode muito bem significar mais perda de competitividade para o Brasil.