no passado, os jornais tiveram o papel de dar relevância e sincronicidade às notícias. as coisas que aconteciam, de fato, eram apenas aquelas que se tornavam notícia nos grandes jornais. tais “bons tempos” eram também aqueles que, ao sincronizar um país [ou o estado, região…], um grande jornal era capaz de formar a opinião da massa e derrubar [ou manter] um governo.
faz algum tempo que não é assim. de mais de uma forma, a sociedade e economia se dessincronizaram. isso porque, na rede, não há mais quase nenhum agente capaz de monopolizar a atenção de uma quase totalidade das pessoas por um longo tempo. as três maiores audiências de internet, no brasil, são uma máquina de busca, uma rede social e um conjunto de aplicações. nenhum dos três tem opinião, ou é formador de opinião; são infraestruturas que usamos para criar nossa presença em rede. sem editor, sem horário, independente de geografia ou de quaisquer grandes temas [impostos pelos outros] do momento. é o fim do “programador” central.
mas os jornais ou, se quisermos, os “noticiosos”, com profissionais ou amadores competentes, possivelmente remunerados, no levantamento, redação e edição, não deixaram de ter um papel na economia. ao fazer seu trabalho de levantar, filtrar, qualificar, editar e sintetizar informação, os jornais criam bancos de dados que contêm, se sua largura e profundidade de análise for boa o suficiente, a história de uma sociedade. quer seja de um interior como taperoá ou de um país como a inglaterra, no último caso possivelmente incluindo uma visão de mundo a partir dali.
este é o caso do jornal inglês the guardian, fundado em manchester por john edward taylor em 1821. quase bicentenário, o jornal enfrenta, como todos os outros, a internet, a maior mudança de plataforma de gestão de ciclo de vida da informação desde gutenberg. com uma diferença fundamental em relação à maioria: resolveu entender o desafio e arriscar, digamos, tudo o que tem numa perigosa travessia para o futuro.
até porque ficar parado do lado de cá, tentando sobreviver no passado, não é bom pro negócio, como se vê no grande cemitério dos jornais. em 2008 e 2009 [até agora] quase 30.000 pessoas perderam o emprego só em jornais americanos.
este blog vem comentando o “fim” dos jornais de papel há algum tempo; veja, por exemplo, este texto [sobre o fim de um dos fins do papel], este outro [sobre a internet, como fonte de notícias, passando os jornais], este aqui [sobre a evolução dos jornais, na rede] e, por fim… dá pra salvar o bom jornalismo?… sobre exatamente o que o título diz: vão-se os jornais mas fica o jornalismo, pelo menos o que vale a pena salvar?
o guardian faz parte da seleta classe do jornalismo que vale a pena tentar salvar. eles, aliás, também acham isso e estão tentando se salvar. para isso, estão transformando radicalmente o que poderíamos chamar de jornal.
um jornal é, principalmente, sua história. as posições que assumiu e defendeu, sua trilha de informação. e o guardian publicou os últimos dez anos de sua história, mais de um milhão de artigos, na rede. e na íntegra. abertos. pra todo mundo. segundo a direção, a competição pode usar como quiser mas, para [qualquer um] usar de forma sistemática, deve fazer um acordo com o jornal.
um jornal é, também, sua máquina de formatação, impressão e distribuição de informação. lembro ter visto rotativas desfilando por cidades, em carretas, como se fosse o futuro do lugar chegando de alguma parte da alemanha. isso era o mundo físico. na web, estamos falando de laptops, bancos de dados, web servers… estamos falando de plataformas de programação e distribuição de informação.
o guardian resolveu se tornar uma tal plataforma: publicou uma API [application programming interface, uma interface de programação, na rede]que torna possível manipular tudo o que existe nos bancos de dados do jornal, agora transformado em plataforma de informação na web. isso significa o que, exatamente? quer dizer que qualquer um que entenda a interface de programação do jornal [mudança: jornal como plataforma de programação] pode manipular tudo o que está no sistema [o guardian], utilizando-o como meio para seus fins, construindo aplicações que, por uma ou outra razão, usem a funcionalidade ou a vasta base de dados do jornal. como estas aqui, da galeria…
tal tipo de mudança vai ser cada vez mais comum, em jornais [o NYT está tentando movimento semelhante] e redes sociais [twitter tem uma API que torna possível um monte de operações sobre o que está armazenado no sistema, como um jogo de palpites sobre futebol…], de empresas a bancos, de governo a sites de comércio e muito mais. dá pra fazer um monte de coisas usando [por exemplo] a plataforma da amazon, amazon web services, inclusive escrever o twitter nela, o que é, aliás, o caso.
deixar de ser um “jornal” e passar a ser uma “plataforma programável, na rede, intensiva em conteúdo” dá dinheiro? ninguém sabe. nem o guardian. mas pelo menos eles estão, entre poucos outros jornais, experimentando, até porque o futuro do negócio de jornais, como jornal clássico, daquele que embrulhava peixe depois… é certo. e nada bom. nem peixe se embrulha com jornal, mais…
se você tem alguma curiosidade sobre o que é uma plataforma de programação intensiva em informação “curada”, editada, revisada, na rede, vá dar uma olhada no que os “novos leitores”, ou melhor os “programadores” do guardian estão fazendo, do ponto de vista de visualização de dados, uma das oito categorias de aplicações que qualquer um pode programar no jornal. abaixo, o resultado de uma delas, as emissões de carbono de um número de países desde 1751.
o próprio guardian [em um de seus twitter] passou a produzir uma sequência muito interessante de dados e gráficos sobre um monte de coisas, como a inflação da inglaterra desde 1948… clique abaixo e vá ver; lá, a visualização é interativa…
…ou efeito usain bolt no recorde mundial dos 100m rasos, mostrada no último ponto do gráfico abaixo, em 2010, baixando o tempo do recorde em quase 1.2%.
agora imagine o dever de casa de um grupo de estudantes do fundamental daqui a alguns anos: descobrir as fontes de dados geográficos, de população, de índices financeiros e econômicos variados e produzir um mapa bo brasil, interativo, sobre a inflação e crescimento, incluindo sua distribuição regional e per capita, para todo o país. no fundamental, e não como dissertação de mestrado. e, ao invés de pegar tal gráfico em algum lugar [hoje, ele não existe] descobrir como programá-lo. no fundamental.
o guardian está participando de uma tendência de abertura dos negócios na e para a web, e não só dos negócios de informação como jornais e portais. para estes, vai ser obrigatório abrir suas bases de informação e criar uma API que torne possível disponibilizar, a partir de lá, novas formas de ver, ouvir, filtrar, compor e interagir [e faturar] com informação, a partir de múltiplas interfaces, sistemas, dispositivos e redes.
as outras empresas? estão no mesmo caminho, e muito mais longe. mas delas a gente fala depois. até lá.