[Texto da série “Silvio Meira no G1”, publicado originalmente no G1, em 21/11/2006.]
Vírus é uma (quase) forma de vida que pode atrapalhar muito o mundo físico em que vivemos. Mas complica muito mais quando surge em mundos virtuais, como uma forma de vida…
Qualquer programa de computador pode ser tratado, em última análise, como um mundo virtual. Um caixa automático, destes que a se encontra em qualquer esquina, é um banco virtual, no sentido em que fazemos lá uma boa parte das coisas que, antes, tínhamos que ir ao banco de verdade, de pedra e cal, para fazer. Numa escala maior, a internet é um conjunto de sistemas de hardware e software que implementa uma grande biblioteca — virtual e programável — de produtos e serviços. Passa o tempo e um número cada vez maior e mais interessante destes mundos vai sendo criado e colocado à nossa disposição, à medida em que uma parte cada vez maior da sociedade vira serviço e tais serviços são informatizados.
Em tal contexto, tinha que haver algum mundo realmente virtual como Second Life, um universo completamente imaginado, inicialmente sem nenhuma relação como o mundo físico, de verdade, que nos cerca. Para entrar no lugar, instale um software cliente em sua máquina, crie um caracter (um “avatar”) e um nome para ele, associado a uma das famílias que habita o lugar e… pronto. Depois de aprender a navegar na interface, que lhe tornará parte real do mundo virtual e lhe possibilitará interagir com representações de coisas e humanos ao seu redor, você se tornará um cidadão de um outro universo, em condições de agir como na sua vida real aqui fora (mais ou menos) e, melhor, fazer coisas que você -nem ninguém- pensariam por aqui.
Second Life é uma criação inspirada no livro "Snow Crash", de Neal Stephenson, onde ficção e realidade interagem sobre uma infra-estrutura de software (o “metaverso”) na qual parecem acontecer, no texto, coisas mais interessantes do que no mundo aqui fora. Snow Crash é, ao mesmo tempo, o nome de um vírus que, no livro, sai do metaverso e afeta as pessoas, como uma gripe do frango virtual. Second Life é um sucesso: tem mais de um e meio milhão de habitantes, 40% dos quais ativos e, a qualquer momento, é fácil encontrar 15, 20 mil pessoas usando o sistema simultaneamente. Nem que seja só por curiosidade, vale a pena ver.
O que dá pra fazer lá? Muito: construir edifícios, desenhar objetos (roupas, por exemplo), vendê-los, lançar clips, ir à balada, fazer reuniões (como a IBM), montar agências de notícias (a Reuters tem uma), ter um blog e, como talvez fosse inevitável, é lá que a Endemol vai lançar um BigBrother virtual (e você pode participar); há histórias de adultério, contratação de detetives e por aí vai…. e, claro, é possível escrever software. Pra tudo. Quando você cria alguma coisa (sua propriedade intelectual virtual), ela é uma representação, em software, de algum conceito.
Uma das “coisas” que uma turma criou, recentemente, foi um copiador-genérico-de-qualquer-coisa, usando o qual é possível capturar, para si, qualquer coisa que um outro tenha criado, sem ter que remunerá-lo. Confusão mundial (lá) sobre propriedade intelectual, possibilitando uma discussão muito interessante sobre copyright, sua validade, uso, remuneração, etc. Esta semana, outro software pipocou em Second Life: um griefer (estraga prazeres em ambientes virtuais) liberou no ambiente um worm (software malicioso de replicação e propagação próprias) chamado grey goo. A coisa instalava anéis dourados girando no ambiente, cuja interação com os (avatares dos) usuários criava ainda mais anéis e assim por diante, levando à exaustão dos (2700+) servidores que mantêm o universo funcionando. A Linden Labs (dona do pedaço) teve que fechar (literalmente), por algum tempo, o mundo virtual, para desabilitar grey goo e suas artes. Antes que o mundo parasse por completo, foi preciso dar um reboot por lá…
Pensando bem, esta era uma capacidade de Second Life que poderíamos ter no nosso universo físico, real: dar um reboot no que não funciona por aqui, como o controle de tráfego aéreo. Mas algo podia desandar seriamente, se tal "funcionalidade" estivesse por perto. Como? O worm que andou solto em Second Life era uma "coisa" que foi terminada pelos administradores do sistema; dependendo do grau de sofisticação da tal "coisa" (ou agente, possivelmente inteligente), ele poderia ser parte importante de um ambiente que não fosse antroprocêntrico, ou seja, centrado em seres humanos.
Num mundo de avatares, não vai dar para diferenciar -para quase todas razões práticas- um agente artificial de um natural. O primeiro poderia ser um avatar controlado por software e o segundo, um outro, controlado por um humano. O primeiro seria uma “coisa” e o segundo… um “de nós”.
Só que, numa sociedade de informação e numa internet cada vez mais de “coisas”, elas poderiam ter direitos. E se um dos direitos de agentes informacionais fosse o de não terminação sem "justa causa", a simples discussão do conceito de justa causa poderia levar a surpresas e conflitos muito interessantes. E levará: um número cada vez maior de sistemas autônomos já controla e interfere no ambiente ao nosso redor e, em futuro nem tão distante assim, seu impacto sobre nossas vidas será enorme. À medida em que isso aconteça, estes sistemas ofenderão interesses, ao mesmo tempo em que atenderão outros e a pressão para que seu funcionamento seja pautado em uma ou outra direção, ou mesmo para que sejam "desligados", será muito grande.
O agente (certamente) humano que desenvolveu e inseriu (o agente) grey goo em Second Life provavelmente estava se divertindo muito com sua criação… e dá pra pensar que era contra o fim da brincadeira. Lidar com agentes informacionais e suas características, dentro de um contexto onde eles não possam ser terminados pelos administradores do sistema sem razão aceitável pela comunidade ao seu redor, vai ser uma das mais complexas atividades da sociedade da informação… quando a maioria dos agentes produzindo e processando informação for artificial.
Breve, acontecerá num mundo real bem perto de você. No virtual, já acontece agora.