Aviso ao leitor: o texto entre as duas linhas de estrelas azuis, abaixo, como o título original acima, foi publicado originalmente fevereiro de 2006, às vésperas do que estava para ser o anúncio do padrão brasileiro de TV digital, o SBTVD. Lá embaixo, depois da segunda linha de estrelas, há um comentário de agora, novembro de 2015, sobre o que rolava lá, o que aconteceu de lá pra cá e o que está rolando agora. Boa leitura.
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Pelas alegorias que vinham sendo avistadas nos barracões e pelo batuque, acertos e evoluções na quadra, até parecia, umas semanas atrás, que o G.L.R.C.C.M.TV.D. – Grêmio Lítero-Recreativo Cultural Carnavalesco Misto TV Digital – ia mesmo sair em tempo de Momo. Seria melhor desfilar um pouco depois, segundo quem não via enredo e evoluções prontas, quanto menos ensaiadas e havia uma certa confusão na torcida: sem tempo pra entender as alas do desfile, havia gente muito importante nas arquibancadas e camarotes ensaiando, por sua vez, uma estrondosa vaia bem no meio do desfile. Mas, segundo parte da diretoria, Carnaval é só uma vez por ano, vem aí, e não há tempo a perder, que depois é Cinzas.
Nas últimas poucas semanas, no entanto, algo parece estar mudando. A decisão sobre o sistema de TV digital a ser usado no país é a mais importante, em termos de impacto industrial e cultural, que será tomada pelo governo, em informática, na década. A outra, que não veremos nem tão cedo, seria uma política de inclusão digital, capaz de criar um mercado de muitos bilhões de reais para envolver algumas dezenas de milhões de pessoas a mais no grande desfile da internet. A chegada da TV digital, que de uma forma ou de outra aponta na passarela, vai mudar o país inteiro: mais de 9 em cada 10 famílias têm TV, há centenas de estações, repetidoras, estúdios, uma cadeia de valor complexa e sofisticada e muitas dezenas de bilhões de reais de negócios nas próximas décadas.
Para uns, a decisão chega atrasada, pois deveria ter sido tomada no fim do último governo. Para outros, é açodada, pois os sistemas existentes estão a ponto de ter sua segunda, mais avançada, versão em pouco tempo. Isso poderia levar o Brasil, caso tivéssemos a competência negocial para articular com os vários modelos existentes, a ser o primeiro onde uma fusão de modelos -um padrão mundial de próxima geração- entrasse em operação, com óbvias vantagens para todos os envolvidos no padrão local. Aliás, mundial. Por outro lado, poderíamos pender para um lado e, escolhendo a próxima geração de um certo padrão, alavancarmos a capacidade nacional de participar nos destinos de um possível padrão dominante nas próximas décadas…
Enquanto isso, a China, que como nós está à busca de um padrão, manda avisar que não acha que padrões farão qualquer diferença. O divisor de águas, segundo os práticos planejadores chineses, será a política industrial associada ao novo modo de ver e interagir com TV. Por isso mesmo, a China não vai anunciar, em 2006, um padrão, e sim uma política industrial para TV digital. A China fará isso porque entende não ter a massa crítica de conhecimento e capital humano para atacar um padrão como um todo e vai incentivar – ou ordenar – suas empresas a fazer parcerias com os grandes fornecedores internacionais de tecnologia. O resultado é previsível: dentro de poucos anos, televisores chineses de todos os padrões em qualquer lugar do mundo…
Nas quadras de Brasília, o ensaio que se ouvia, uníssono, até a poucos dias, era o oposto de Beijing: tudo indicava que íamos anunciar um padrão e “convocar” a indústria para atendê-lo. Como quase não há indústria nacional na área, talvez a decisão fizesse sentido. Ou não: a definição de padrões é sempre uma oportunidade de criar mercados e indústrias, no mais das vezes exportadoras. Mas as indústrias e investidores nacionais pareciam estar, se muito, nas arquibancadas. E ensaiando a tal vaia. Ocorre que forças outras entraram no desenvolvimento do enredo e na arrumação do pagode, na rua, e parece que está começando a haver – antes tarde do que nunca – uma discussão baseada em conhecimento real do negócio de TV e TV digital, quando antes parecia que escolher um modelo de TV digital para o Brasil era apenas uma questão de definir a camada, digamos, “aérea”, do sistema inteiro. Se for pra confiar nos boatos desta semana, não só parece que estamos discutindo tecnologia e modelos de negócio e investimentos, além de contrapartidas para a eventual adoção de um modelo já estabelecido… mas também qual a participação do país, pela via de sua capacidade de pesquisa, desenvolvimento e inovação, na evolução de um tal sistema.
Santa Clara, padroeira da televisão, vai ver, está entrando no samba e no Carnaval. Até pelas sábias palavras de Caetano, que parecia saber que um dia a gente até poderia usá-las num debate sobre escolhas, na TV digital: “Santa Clara, padroeira da televisão/ Que o menino de olho esperto saiba ver tudo/ Entender certo o sinal certo se perto do encoberto/ Falar certo desse perto e do distante porto aberto/ Mas calar/ Saber lançar-se num claro instante…”. Tomara. Tomara que ainda dê tempo pra pensar profundamente – antes do tal anúncio – os negócios de TV digital, sem o que a alegoria nacional de política de tecnologia, industrial e comércio exterior não impressionará muito a comissão julgadora. E a favorita pro nosso Carnaval Digital, talvez, passe a ser a Unidos de Beijing, desfilando o tema Festival da Primavera Industrial na TV Digital do Brasil.
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PS, 10/11/2015: Este texto foi publicado no começo de fevereiro de 2006, quando Recife e Olinda já eram Carnaval há muito tempo e quando o Rio preparava o seu, no fim do mês. São Paulo e Brasilía não tinham Carnaval. Ainda. Ou desde então.
O SBTVD saiu, enfim, no fim de junho de 2006 e a meta, à época, era cobrir todo o território brasileiro com o sinal de TV digital terrestre, aberta, em dez anos, ou até daqui a seis meses, tipo no São João do ano que vem. A hipótese, na verdade o decreto definindo o padrão, está muito longe de ser cumprido (e nem dobramos a meta!…): até aqui, não se desligou o sinal analógico numa única cidade brasileira e parece que a primeira só há de acontecer no ano que vem. Isso, bem, se…
Enquanto isso, o que foi que aconteceu nos últimos dez anos?… A TV aberta está se tornando cada vez mais irrelevante –e a fechada também, substituída pelos serviços de streaming e pela mudança nos hábitos e humores das audiências, que não são mais públicos e sim comunidades, de interesses e propósitos específicos, em suas múltiplas redes sociais, fora do alcance e controle das TVs e teles (pelo menos por enquanto). O número de assinantes de TV paga ainda cresce, na periferia, como na China e na América Latina, mas parece que isso só acontece porque nós não temos banda larga de verdade.
Como se sabe, a TV digital daqui é só mesmo transmissão e recepção digital. Fora isso, não rolou nada mais. A conversa de universalização de acesso à rede e a serviços pela TVD era, bem… só conversa, e fiada. Não aconteceu e nem vai acontecer. O que o Brasil conseguiu, por mais algum tempo, foi manter vivo o mercado de TV aberta, com o precioso auxílio da notória incompetência federal para políticas públicas, especialmente banda larga de qualidade, em quantidade, universal.
Lá na Ásia, no quintal da China, o que foi que aconteceu?… A TV analógica aberta está sendo trocada e desligada, como você vê no gráfico abaixo, deste link, mas não está sendo substituída pela TV digital aberta, e sim pelo cabo, digital, que vem junto com o acesso à internet… que é o que todo mundo, mesmo no Brasil (principalmente se tivesse como pagar, quando tivesse à porta) gostaria de ter. Uma década, em tecnologia, muda tudo. Especialmente quando a Lei de Moore é ajudada por políticas públicas competentes e bem executadas. Não é, nem de longe, nosso caso.
E a história do governo da China de dominar o mercado global de TV digital? De 2006 pra cá, pra quem não tinha nada no mercado, o progresso foi enorme. Olhe a tabela abaixo. Os dez primeiros fabricantes têm 90% do mercado (e os outros são irrelevantes). Samsung e LG, sozinhas, tomam quase 40% pra Coréia. A TCL, Hisense, Skyworth, Konka e Changhong são chinesas, e já têm, somadas, 24% do mercado global. Em um ano, duas empresas japonesas e uma de Taiwan saíram da lista. A Sharp é a próxima. A Sony deveria se cuidar, para continuar relevante. E as coreanas também. A diferença entra a soma das chinesas e a das coreanas é um pouco mais de 30 milhões de TVs, num mercado mundial de pouco mais de 200 milhões de receptores por ano. Mais hora, menos hora, a China chega lá.
E o Brasil, nessa? Abaixo, uma propaganda do Colorado Colorido RQ, o televisor com Reserva de Qualidade, orgulho na indústria eletrônica nacional… na década de 70. Feito pra receber os sinais em PAL-M, padrão que só existia… no Brasil. Bem, não: Laos e parte da Tailândia, também. E é exatamente este PAL-M que vamos começar a desligar, processo que vai levar até 2020, ou mais.
Quando era bem mais fácil e simples fabricar TVs (e muito mais) localmente, criamos um padrão que não criou nenhuma indústria nacional de TV de classe global, quer nos sistemas de produção, emissão ou recepção. Não foi por falta de padrão. Mas de muitas outras coisas. Impressionante e surpreendente é que tenhamos repetido o processo inteiro, quase ao pé da letra, na esperança de que desta vez, mesmo sem as outras muitas coisas, acontecesse, do nada, uma indústria local. Mesmo que fosse de classe local. Tentar e errar é humano. Não aprender, no processo, é burrice.