Vivemos num mundo tecnológico. E isso não começou na era digital, apesar de se associar, quase sempre, a palavra tecnologia às tecnologias de informação e comunicação (TICs), cujas ondas de inovação vêm caracterizando a evolução dos negócios, hábitos pessoais e de grupos há mais de quarenta anos, em escala global. A miríade de tecnologias que nossa espécie usa nos caracteriza, como humanidade, há muitas dezenas de milhares de anos. De múltiplas formas, humanidade é inseparável de tecnologia, como se as palavras fossem sinônimas. Até porque foram elas que nos deram uma vantagem competitiva sustentável e definitiva sobre todos os outros candidatos a liderar a vida no planeta. Por bem ou por mal. Em boa parte, especialmente nos últimos 200 anos, por mal.
Boa parte desse mal se deve ao rastro de destruição causado pelo uso intenso de tecnologias primárias, na maior parte dos casos elementares, ainda, em muito larga escala e com efeitos colaterais dramáticos. Resultado do estado algo ingênuo do conhecimento básico e aplicado que suporta a construção e uso de ferramentas, sistemas e processos que, exatamente por isso, ainda se encontram na primeira infância, ou antes. Como motores a explosão.
Daqui a alguns milênios, será ininteligível que, no século dos automóveis, as gerações de então (incluindo a nossa) tenham praticamente queimado o planeta para se movimentar e transportar de um tudo, usando um recurso finito que ainda por cima tem outras, bem mais complexas e sofisticadas, utilidades. Ao mesmo tempo, no futuro, talvez ainda caiba a pergunta: Será que eles -desde a revolução industrial- teriam conseguido avançar na velocidade em que o fizeram… sem combustíveis fósseis? Pois é… será?
Talvez nunca saibamos a resposta definitiva. Até porque a pergunta envolve o conceito de avançar e não os de progredir ou se desenvolver. Estamos cansados de saber que nem todo avanço é progresso e quase nenhum progresso é desenvolvimento verdadeiro, equilibrado e sustentável. E uma coisa parece líquida e certa, agora: para haver um “lá no futuro” para se discutir as tentativas e erros (muitas!) e acertos e aprendizados (também!) daqui do passado, é preciso, e urgentemente, cuidar para que haja um desenvolvimento verdadeiro, equilibrado e sustentável, inclusive das tecnologias do presente e do futuro.
Entre estas, e agora de várias formas habilitando todas as outras, estão as TICs, tecnologias de informação e de comunicação, no momento entrando em sua década das coisas, a quinta onda de inovação baseada eletrônica digital altamente compactada, os chips.
Do ponto de vista de inovação em, com e sobre TICs, a década de 70 foi do hardware, que chegou às empresas em larga escala a partir do fim da década de 60, criando a capacidade de processar informação como nenhum negócio tinha tido antes. Na década de 80, começamos a ver a grande revolução de software, que por absoluta falta de meios universais, estruturados e escaláveis de produção e distribuição, antes, não tinha impacto e mercado. Ao mesmo tempo, miniaturização, aumento de performance e capacidade do hardware tornou os computadores pessoais e parte das mesas dos executivos, dos balcões de atendimento e, em muito menor escala, ainda, da infraestrutura de entretenimento e educação nas casas.
A década de 90 viu o que muitos entendem ser a verdadeira revolução global baseada em TICs: o avanço do hardware e software, nas décadas anteriores, levou à internet comercial, no meio da década. A “rede” começou a criar um espaço global conectado que, mais tarde, iria mudar parte significativa do comportamento das pessoas, instituições e mercados. E as relações de dependência e poder. Nada tão revolucionário se estabelece e atinge um estágio maduro rapidamente. A década de 2000 nos mostrou que o impacto de hardware, software e redes seria local, global e definitivo, com a chegada dos sistemas de informatização pessoal conectados, os smartphones, abrindo a era do móvel, da mobilidade informacional. Que foi essencial para que pessoas e instituições se apropriassem, em escala pessoal e universal, das redes sociais virtuais, hoje absolutamente vitais, em que faceta de atividade humana se pensar.
Agora começa a hora da internet das coisas, que traz consigo o potencial de informatizar e conectar cada objeto existente no planeta, de camisas e óculos a geladeiras e portas, formando no futuro uma rede de trilhões de coisas. Tais objetos, conectados e medindo seu universo, vão gerar uma imensidão de dados sob seu comportamento e contexto e, por outro lado, poderão receber pequenas missões a cumprir -comandos-, como determinar a uma lâmpada que entre no modo descanso porque ninguém precisa dela agora. Tal comando poderia ser dado pela rua, que também está na rede, a qualquer lâmpada… que poderia ser, porque não, um sinal de trânsito. Imagine as possibilidades. Até porque a lâmpada poderia tomar a decisão “sozinha”.
Uma cidade como Recife tem mais de 120 mil postes de iluminação pública, muitos deles com múltiplas lâmpadas. Quanta energia economizaríamos se as lâmpadas tivessem sensores de presença e, em conjunto, a iluminação seguisse quem precisa dela? Este é só um pequeno exemplo de infinitos cenários e casos de uso em que a maturidade das revoluções de inovação em TICs, combinadas na Internet de Tudo (nós, as instituições, as coisas…), pode ser a base para se gastar menos. Menos de um insumo elementar da vida na Terra, energia. E não menos do precioso imposto pago contribuintes; gastá-lo frugalmente deveria ser obrigação do setor público. Mas talvez não haja meios, hoje, para saber quantos postes estão apagados, numa cidade qualquer -e por quanto tempo ficarão assim. A internet de tudo pode mudar… tudo.
Parte desta rede do futuro já está presente em algumas das mais avançadas redes de energia, começando na geração em sistemas centralizados, no transporte e distribuição de energia, até o consumo por equipamento nas casas e prédios, além da geração na periferia e a contribuição desta à rede, tudo habilitado por redes inteligentes de coisas articuladas. Geradores eólicos de alguns fabricantes, hoje, são totalmente informatizados, mas não só: paralelamente ao gerador no campo, há geradores virtuais correspondentes, nos laboratórios, que ajudam a ajustar os parâmetros do gerador real para que ele se comporte o mais próximo possível de seu modelo computacional. De certa forma, a vida começa a imitar a arte, digital.
Agricultura de precisão é um dos próximos sistemas onde TICs serão tão -ou mais- importantes do que a terra e as sementes. Dos satélites e o processamento de suas imagens, cujo nível de detalhe e diversidade aumenta radicalmente, ao tempo em que o custo cai no mesmo ritmo, à previsão do tempo, cada vez mais instrumentada por um número maior e mais diverso de sensores, até o ciclo de vida das coisas da terra, tudo tem cada vez mais TICs, usadas de forma cada vez mais eficaz e eficiente.
Plantio e colheita, e o tempo entre os dois, estão sendo informatizados -isto é, todo o ciclo está passando a ter um correspondente digital. Ao mesmo tempo, parte significativa do agribusiness começa a ser automatizada, com sistemas digitais passando a controlar, de forma autônoma, partes do ciclo de vida, como plantio, colheita e todos os tipos de medidas e ajustes sistêmicos entre os dois… incluindo a negociação da produção nas bolsas globais. Isso vai levar, no médio e longo prazo, ao uso cada vez mais eficaz e eficiente dos escassos recursos disponíveis para a produção, sejam a terra, a água, a energia e os outros insumos. Sem falar na distribuição, na venda, consumo e reciclagem de tudo que envolve alimentos, esses sim o insumo fundamental da humanidade. Quase como se tudo tivesse que funcionar para que, no fim, houvesse comida para todo mundo. Mas… e não é isso mesmo?
A nova revolução verde é digital e terá um impacto ainda maior do que a primeira, porque vai afetar todo o ciclo de vida dos alimentos, desde bem antes de plantar -o digital editando o DNA de plantas e animais- até bem depois de consumir -criando novas cadeias de valor globais onde cada centímetro quadrado de terra, no planeta Terra, vale tudo.
Mas nem tudo é solução, há problemas, difíceis e grandes, para resolver, também em TICs. As tecnologias que vieram antes das digitais eram consideradas (e eram, e quase todas ainda são) “sujas” porque sua pegada ambiental era larga e profunda. De longe, têm-se a impressão de que o digital é ambientalmente limpo, mas este decididamente não é caso. Não só a produção de componentes, equipamentos e sistemas depende de metais pesados e terras raras, mas o uso, reuso, descarte e reciclagem apresentam sérios desafios. Boa parte dos sistemas atuais, de uso global por bilhões de pessoas e milhões de organizações, são serviços que dependem da data centers, parte essencial da capacidade global de computação e comunicação, que têm uma dependência significativa de energia gerada a partir carvão.
Estima-se que tais centros, onde são armazenados e processados os dados que todos nós e todas as nossas coisas usam (isso é, globalmente, a “nuvem”), tenham consumido nada menos de 415TWh em 2015, cerca de 40% a mais do que a Inglaterra, a quinta maior economia do mundo. Isso é 3% da economia utilizada no planeta em 2015 e 2% de todos os gases de efeito estufa. E a previsão é de um consumo duas a três vezes maior até o fim da próxima década (veja Global warming: Data centres, The Independent, edição de 23/01/2016, ind.pn/1pHY0gq).
Aqui, no fim do texto, é onde voltamos para bem antes do começo da história da humanidade. As ferramentas de três e meio milhões de anos atrás, descobertas em Dikika, na Etiópia, foram os primeiros instrumentos cortantes, parte da história das facas e, depois, armas. Por incrível que pareça, são objetos da história da informação, pois codificam informação e conhecimento sobre sua ação em contexto. Serviram para estender o corpo humano, aumentar seu raio de ação e impacto.
Bem depois disso, datam de um milhão e novecentos mil anos as primeiras evidências de uso de fogo para cozinhar. Um processamento que aumentou significativamente a quantidade de energia, na forma de nutrientes, para quem os dominava. Ferramentas e energia. Tecnologias. Juntas. No ambiente. Com todas as suas vantagens e efeitos colaterais. Como as TICs, hoje.
Desde sempre, e para sempre, tecnologias e humanidade são e serão sinônimos. O grande desafio, daqui para a frente, é fazer com que o uso de muito mais informação, informatização e automação, com TICs servindo quase sempre de base para o uso muitas outras tecnologias (e das próprias TICs), gere muito mais resultados desejados e muito menos efeitos colaterais indesejados do que qualquer outro tipo de tecnologia gerou até aqui, nessa nossa ao mesmo tempo longa e curta história.
Muito longa se não tivermos muito mais tempo para ver e viver. E muito curta se nós e nossas lideranças souberem usar o que sabemos e sabemos fazer para fazer com que as próximas gerações de tecnologias dêem muito mais resultados e sejam muito mais sustentáveis do que conseguimos até aqui.